Proteger o status quo
Ainda a propósito do puritanismo moral (que subitamente emerge do debate político português) ao serviço da difundida prática de chacinar pessoas publicamente, agora pergunta-se «qual é o interesse do PSD em ter um candidato suspeito (…) de actividades pouco recomendáveis?».
Numa lógica estadista em que aquilo que está certo fazer se mede em função de interesses internos, a lembrar a máfia que castiga quem não joga pelas suas regras, o PSD enquanto jogador no colectivo não tem de facto qualquer interesse em atirar para si esse tipo de atenções.
Manuela Ferreira Leite é precisamente criticada por não ceder às regras do politicamente correcto, por gerir as suas escolhas segundo critérios éticos e não segundo os critérios dos interesses que a máquina engendrou para se auto-sustentar.
Nessa lógica amoral, percebe-se que o apurar concreto da natureza das actividades do candidato seja irrelevante: não está em causa o princípio de justiça nem qualquer outro tipo de valor ético, o que está em causa é o desafio às regras da máquina, uma máquina mafiosa em que justiça e política se misturam e governam as vidas privadas ao ponto em que ser suspeito pela justiça é suficiente para entrar na categoria de ostracizado político. E dizer que a presunção de inocência (tratado como uma espécie de artifício sem alicerce ético) nada tem que ver com o caso é como assumir a inocuidade da bufaria como instrumento político.
Mesmo que não intencionalmente, esse raciocínio serve na prática uma técnica de defesa do status quo, desenhada para tornar impossível a qualquer pessoa não-amiga da máquina, qualquer pessoa sequer suspeita de infringir as regras, candidatar-se a um cargo político (potencialmente reformador da própria máquina), o que garante internamente a segurança da máquina tal como está, aceitando no seu interior apenas as pessoas que aceitam não a mudar. Mudar as regras por dentro é impossível quando essas estão protegidas por mecanismos de ostracização dos não-amigos.
Em nota, acrescento que, para a máquina política, crimes dependem apenas da definição de quem já está na máquina. Assim, por exemplo, o «financiamento partidário ilegal» não tem referente ético, é um eufemismo para “não respeitou as regras que inventámos para nós próprios logo não pode continuar no nosso jogo”, um eufemismo que define voluntariamente corrupção como o acto de não jogar pelas regras. Que problemas éticos adviriam de um financiamento privado de políticos? Ou ainda mais flagrantemente, será ético defender o financiamento estatal dos partidos?
ps: dado que o texto foi mal interpretado devido a imprecisões do mesmo, faço a seguinte nota pós-publicação: quando falo de ostracização de pessoas não-amigas à máquina não digo nem defendo que as actividades que António Preto supostamente fez sejam não-amigas da máquina (positivas). O objectivo era levar o raciocínio à última consequência e mostrar que serve os interesses do status quo. Se MFL tivesse cedido a pressões politicamente correctas teria de facto servido os interesses do PSD, mas teria traído a sua consciência ética. Para dar outro exemplo, se a lei de um país proíbe que se fira a sensibilidade de judeus, um cientista que chegue à conclusão de que câmaras de gás não existiram não tem qualquer defesa possível em tribunal, e por mais que tente ele e o seu advogado irão presos porque durante a própria tentativa de defesa incorreram novamente no crime pelo qual o cientista foi acusado. Quando esse país quisesse calar um historiador qualquer teria apenas de invocar que ele fere a sensibilidade de judeus, o que é um julgamento tão bárbaro quanto ostracizar alguém por "suspeitas". Neste e no outro caso, o apuramento da verdade é sacrificado em prol da lógica de interesses internos à máquina no poder, atitude que desafia qualquer princípio ético. Claro que se se apurar que António Preto cometeu de facto crimes, a atitude de MFL terá de ser outra.